CRÍTICA: RÉQUIEM PARA UM SONHO: A tragédia que é continuar vivendo depois que o sonho morreu.
- João Paulo
- 30 de jun.
- 7 min de leitura

Talvez a melhor forma de começar essa crítica seja refletindo sobre nossos sonhos. Não os sonhos que temos ao dormir à noite, mas os que guardamos na alma a vida toda. Sonhos que constroem nossa identidade, nossa perspectiva e nos dão um propósito, uma direção. Algo que você queira realizar? Conquistar? Preencher? Algum lugar pra ir? Algo pra fazer? Nomeie! Não há limites. Qualquer que seja o sonho, pense em algo que o ajude a preencher o vazio. Pense em algo que tranquiliza seu coração, que segura sua cabeça, afaga suas bochechas e diz que vai ficar tudo bem. Não consigo pensar em algo mais reconfortante e mais aterrorizante do que um sonho.
O que significa a palavra Réquiem? “Réquiem” vem do latim “requiem aeternam dona eis, Domine”, que é a primeira frase da missa de réquiem na tradição católica: “Concede-lhes o descanso eterno, ó Senhor.” Ou seja, um réquiem é uma missa pelos mortos. Uma cerimônia litúrgica, um canto fúnebre, uma prece para quem se foi. Mas, ao longo do tempo, a palavra foi ganhando novos contornos. Virou nome de composições musicais grandiosas, virou símbolo de luto profundo, de adeus ao que não volta mais.
Por que Réquiem para um Sonho? Porque o que morre no filme, o que é enterrado aos poucos, a cada estação do ano, não são só os personagens, mas seus sonhos. Suas fantasias, esperanças, ilusões. É até difícil dizer se são eles que morrem ou se são devorados pelos próprios sonhos. O filme é uma missa fúnebre por tudo o que poderia ter sido. Um lamento por um futuro que não chegará. Um enterro simbólico da juventude, do amor, da liberdade, da conexão humana.
Por que eu quis começar refletindo sobre nossos sonhos? Porque, ao mesmo tempo que conseguem ser luz, são trevas. Ao mesmo tempo que são uma direção, são um horizonte quase impossível de alcançar. Sonhos são esse ponto exato onde o céu toca o horizonte. Quando o sonho se torna mais assustador, mais sufocante e mais impossível do que uma perspectiva, somos obrigados a encarar o nosso vazio. Amedrontados com o vazio, buscamos válvulas de escape onde buscamos fugir e/ou alimentar nossos vícios. Buscamos fugir e/ou alimentar nossos sonhos. Nossas próprias fantasias.
Réquiem para um Sonho são cem minutos de uma descida ao inferno. Cem minutos de uma dose forte de pessimismo. Tão necessária quanto as altas doses de ingenuidade e otimismo. É verdadeiro pessimismo. Não pessimismo disfarçado de realismo, é pessimismo. Uma mensagem que deveria ser clara, direta e assustadoramente horripilante.
Susan Sontag, em seu último livro publicado antes de sua morte, Diante da Dor dos Outros, escreveu: "O horripilante nos convida a ser ou espectadores ou covardes, incapazes de olhar.” Não poderia me identificar e concordar mais. Confrontados com Réquiem para um Sonho, confrontados com uma experiência desconfortável e desconcertante do começo ao fim, ainda seremos apenas espectadores? Ainda seremos covardes ou isso será o convite, a faísca, para que sejamos mais, façamos mais de nós mesmos?

O filme é dividido em estações do ano, começando no verão e terminando no inverno. É uma questão de perspectiva. Mais uma vez, uma mensagem clara. Inconscientemente, sempre esperamos que o sol irá nascer de novo no próximo dia. Esperamos que o final de semana chegue. Esperamos que o verão chegue novamente. Esperamos sobreviver à noite. Esperamos sobreviver à semana. Esperamos sobreviver ao inverno. Apenas esperamos. Incapazes de viver o agora.
Nossos sonhos são injustos, são egoístas. Como suprir algo que é imensurável? Algo que é perfeito? Dessa forma, buscamos soluções rápidas e promessas vazias. Aos poucos, vamos nos entupindo de drogas. Quaisquer que sejam, para sustentar nossos ciclos viciosos. Somos viciados em sonhos, histórias, significados, propósitos, sentido. Somos viciados em crenças, terços e religiões. Somos viciados em deuses.
No filme Soul, da Pixar, de 2020, somos presenteados com o seguinte diálogo: “Tem uma história sobre um peixe. Esse peixe foi até um ancião e disse: ‘Tô procurando um negócio. Um tal oceano.’ ‘O oceano?’, o ancião falou. ‘Você está no oceano.’ ‘Isso?’, disse o peixinho. ‘Isso aqui é água. O que eu quero é o oceano.’”
Darren Aronofsky, também diretor de Cisne Negro e Mãe!, explora em Réquiem para um Sonho o horror psicológico como forma de alcançar as vísceras do espectador. Alcançá-las, espremê-las e contorcê-las. Nunca com a tentativa de julgar. Nunca com a tentativa de discutir o que é certo ou o que é errado. Muitos ainda confundem a abordagem do filme como sendo moralista. O que faz eu me perguntar se essas mesmas pessoas sequer sabem o verdadeiro significado dessa palavra.
Algo é moralista quando deixa de abrir perguntas e começa a dar respostas. Um sermão disfarçado de cinema, literatura, arte. É quando a obra se coloca numa posição de superioridade ética, julgando o comportamento dos personagens (e, por tabela, o nosso) com uma régua rígida de “certo” e “errado”, “bom” e “mal”.
Em vez de mergulhar nas contradições humanas, ela aponta o dedo. Em vez de abrir abismos, constrói cercas. E o pior: geralmente faz isso sem nem perceber, achando que está “ensinando” algo. É a diferença entre uma obra que olha pro humano com compaixão e uma que quer dar lição de moral com cara de manual da autoajuda disfarçado de drama.
No caso de Réquiem para um Sonho, muita gente olha e diz “é um filme contra as drogas”, como se fosse uma campanha publicitária do governo dos EUA nos anos 80. Mas a obra é mais complexa do que isso. Não é um panfleto antidrogas, é um lamento sobre desejo, vício, solidão e a busca desesperada por algo que nos salve. Mesmo que a salvação seja uma ilusão vendida em cápsulas, televisão ou açúcar.
Ou seja: quando a leitura moralista toma conta, ela reduz o caos poético da experiência humana a uma equação de comportamento. E, sinceramente, a arte que mais me toca não quer me corrigir. Quer me abraçar no meu erro e dizer: “Estamos juntos, meu bem, mesmo que tudo esteja desmoronando.”
Na minha crítica do filme 28 Years Later, eu falo sobre quando uma história incorpora uma maturidade, uma sensibilidade, apenas adquirida com vivências do mundo real. Não consigo imaginar alguém contando uma história como essa sem ter vivenciado essa dor de perto. Para alguém como eu, que vivencia isso todos os dias dentro de casa, é ao mesmo tempo tão libertador, tão reconfortante, como doloroso. Eu me sinto visto, me sinto reconhecido, me vejo. No momento que me aproximei do vazio, creio que tenha ficado mais endurecido, apesar de também mais sensível. Alguns dos momentos mais ricos, significativos e transformadores da sua vida podem estar além dos limites que você pensa serem os seus agora. Não há antídoto para o medo do vazio.

Réquiem para um Sonho é um lamento fúnebre, é uma ópera em ruínas. Não é sobre “não use drogas”, é sobre a devastação do desejo, do sonho humano. O desejo que corrói, que destrói, que queima até o último resquício de identidade em nome de uma falsa promessa de plenitude. Aquilo ali é sobre vazio. Sobre esperança como veneno. Sobre a dor que se esconde no cotidiano. Não é moral. É trágico.
Réquiem para um Sonho não quer que você diga “que horror, não vou usar drogas”. Ele quer que você sinta o desespero de uma alma que se agarra a qualquer coisa pra não afundar. Resumindo: não é um filme sobre drogas. As drogas são mais um personagem no filme. São o meio, não o fim.
Todos os personagens tentam sobreviver ao mundo real com alguma válvula de escape, e todas falham. O que resta é dor. Uma oração final. Dessa forma, o título diz tudo. Réquiem para um Sonho é um canto fúnebre por sonhos mortos. É como se o filme dissesse: “Aqui jaz o sonho americano. Aqui jaz o que nos fazia humanos.” E aí, quando alguém chama isso de moralista, parece que estão cuspindo no velório.
Aronofsky retrata todo o caos muito bem através de uma montagem repetitiva, acelerada e desacelerada. Me lembra All That Jazz, do icônico e eterno Bob Fosse. Através da imagem e do som, mergulhamos nesse pesadelo e não saímos dele até os créditos finais rolarem. Nunca senti tanto medo de uma geladeira. Importante ressaltar a performance esmagadora e dilacerante da atriz Ellen Burstyn. Uma que nunca vou esquecer.
Concluindo, Réquiem para um Sonho é um filme sobre a tragédia que é viver depois que o sonho morreu. Nos apagamos de tantas formas, com tantas coisas, todos os dias, o tempo todo. Muitos de nós seguimos assim até o fim de nossas vidas. Seguimos nos apagando até não sobrar nada. Nada do que já foi, nada do que poderia ser, nada. Hoje, meu maior medo é ser abandonado. Ainda não sei se abandonado pelos outros ou abandonado por mim.
Aos quarenta minutos, acontece o seguinte diálogo:
“Qual a grande coisa de aparecer na televisão? Essas pílulas que você está tomando vão matar você antes que apareça, pelo amor de Deus!”
Diz Harry, filho de Sara. Ela responde:
“Grande coisa? Eu sou alguém agora, Harry! Todo mundo gosta de mim! Logo, milhões de pessoas vão me ver e vão gostar de mim. Vou contar pra elas sobre você, seu pai. Sobre como ele foi bom pra nós. Lembra? É uma razão pra se levantar de manhã. É uma razão pra perder peso e pra caber no vestido vermelho. É uma razão pra sorrir. Faz o amanhã suportável. O que eu tenho, Harry? Hein? Por que eu deveria arrumar a cama ou lavar os pratos? Eu faço isso, mas por que eu deveria? Eu sou sozinha. Seu pai se foi, você se foi. Eu não tenho ninguém pra cuidar. O que eu tenho, Harry? Eu sou só. Sou velha. Gosto de como eu me sinto. Gosto de pensar no vestido vermelho e na televisão e em você e no seu pai. Agora, quando eu vejo o sol, eu sorrio.”

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